Felicidade Clandestina
Clarice Lispector, 1971
Felicidade clandestina é um livro que reúne 25 contos da escritora brasileira Clarice Lispector - alguns já publicados anteriormente - sendo também o título do primeiro conto que você vai ler:
Ela
era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio
arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas.
Como se não bastasse enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com
balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de
ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós
menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela
nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de
paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas.
Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e
“saudade”.
Mas que talento tinha para a
crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa
menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias,
altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo.
Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia:
continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o
magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente,
informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu
Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E
completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no
dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me
transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar
num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua
casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa
casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia
emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para
buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava
toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de
andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o
dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o
amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí
nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente
nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico.
No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração
batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder,
que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da
vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto
tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não
escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me
escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes
aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu
sofra.
Quanto tempo? Eu ia
diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o
livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o
emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras
se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu
estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu
sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à
porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa,
entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais
estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu.
Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca
saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher
não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da
filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua
filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas
de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a
filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o
livro por quanto tempo quiser. ”Entendem? Valia mais do que me dar o livro:
pelo tempo que eu quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode
ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu?
Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse
nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem
devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra
o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito
estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não
comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter.
Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui
passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não
sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as
mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A
felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como
demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha
delicada.
Às vezes sentava-me na rede,
balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com
um livro: era uma mulher com o seu amante.
JÁ LEU? AGORA RESPONDA:
1. A personagem principal da
história é apresentada e de acordo com a primeira parte do conto, o que a
garota possuía que todas as crianças devoradoras de livros gostaria de
ter?
2. Pela leitura do trecho é
possível inferir onde a história acontece? Como você chegou a esta resposta?
3. Comprove com uma passagem
do texto se o narrador desse conto é observador ou trata-se de um narrador
personagem.
4. A personagem conseguiu o
que tanto desejava? Explique.
5. Descreva os elementos da
narrativa:
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